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Fotografia de Kenchiro168/Shuttterstock

Eu só fui ter plena consciência do que é a cultura do estupro quando, há alguns anos, descobri que a, na época, minha namorada (quase noiva) havia sido violentada duas vezes, sendo pelo menos uma dessas na época de escola quando ela deveria ter 15 anos. Foi através de uma cartinha muito doída de se ler que ela me contou o que ocorrera. Ela só teve coragem de me contar quase dez anos depois do ocorrido, porque, na mente dela havia um conflito muito intenso entre ela saber que sofreu uma violência e o sentimento de culpa pelo o que aconteceu. Mas como ela podia ser a culpada? Na época eu não consegui entender isso.

Na carta ela me contou detalhes de como tudo ocorreu, mas não os contarei aqui. Basta sabermos que ela foi violentada em sua casa.

O mundo sumiu abaixo dos meus pés ao descobrir pelo que ela passara! Eu a amava muito na época, tínhamos um relacionamento relativamente longo e decidi que iria fazer de tudo pra ajuda-la. Mas tudo o que eu sabia sobre estupros era o que via em filmes e vagamente em notícias de jornais. Não era muita coisa. Passei a dedicar uma parte do meu tempo com pesquisas sobre o assunto, sobre o estupro, sobre como auxiliar psicologicamente a mulher que sofrera tal agressão. Encontrei muita coisa! Mas, para meu desespero e tristeza, me deparei com uma realidade aterradora.

Em linhas gerais foi essa a realidade que encontrei:

  • A cada hora, 16 mulheres enfrentam estupradores;
  • Uma mulher é estuprada a cada seis minutos;
  • A cada 18 segundos uma mulher é espancada;
  • Desde 1974, a taxa de agressões contra as mulheres jovens (idades 20-24) saltou 50 por cento;
  • Três em cada quatro mulheres serão vítimas de pelo menos um crime de violência durante a sua vida;
  • Apenas 50 por cento dos estupros são comunicados e daqueles relatados, menos de 40 por cento irá resultar em prisões;
  • Uma em cada sete mulheres atualmente cursando faculdade foi estuprada;

Esse dados são do US Department of Justice (Departamento de Justiça dos EUA) do ano de 2012 e os retirei do excelente Blogueiras Negras (blog que recomendo fortemente). Obviamente esses não são os mesmos dados que encontrei em minha pesquisa anos atrás, mas eles ainda refletem a mesma realidade. A realidade que aprendi ser conhecida como da cultura do estupro.

Fiquei em choque ao ver como nós homens tratamos as mulheres. Molestamentos, violência física, verbal e psicológica, descaso, desrespeito, estupros. Tudo isso não importando o local. Pode ser nas ruas, nos transportes públicos, em suas residências, nas escolas, universidades, no trabalho. Parece que o simples fato da mulher existir seja motivo suficiente para trata-la como lixo. Porém, apesar de tudo isso ser revoltante e degradante, não foi o que mais me chocou.

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A violência contra a mulher

O que me chocou de fato foi que, apesar de todos esses dados, de toda essa violência, nós não damos a menor importância a ela. Ao contrário, chegamos ao ponto de apoia-la.

“Espera um pouco aí, Humberto!” você pode questionar: “Sou uma pessoa consciente, sensata! Jamais iria apoiar algo tão vil e degradante quanto o estupro ou a violência contra as mulheres!” Mas será mesmo que não?

Mas que tal pensarmos um pouco sobre o assunto?

Quantas vezes ao nos depararmos com a notícia de que uma mulher foi estuprada nos pegamos pensando: “Mas também, com essa roupa, ela tava pedindo pra ser estuprada!” Ou: “Mas quem mandou andar nesse lugar e nesse horário? Só podia ser estuprada mesmo!”

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Repararam no que essas duas frases tem em comum? Além do fato de serem extremamente populares, ambas põem a culpa da agressão em quem foi agredido e não no agressor. Em outras palavras a culpa do estupro está na mulher estuprada e não no estuprador.

Embora essa seja uma afirmação falaciosa sobre vários aspectos, ela é extremamente difundida, sendo comum até mesmo entre as mulheres. De tão difundida é encarada como um fato, uma verdade. Essa ideia está tão enraizada na mentalidade das pessoas em geral que, invariavelmente acabamos por culpar a mulher por ser responsável por ter sido estuprada. Dizemos logo que sua saia estava muito curta, que seu decote muito profundo, que ela estava bêbada, que ela permitiu… A culpa é sempre dela. E sempre que fazemos isso acabamos legitimando a atitude do criminoso, quase como se estivéssemos o desculpando pelo acontecido. Mesmo não sendo estupradores ou machistas, sempre que reproduzimos esse tipo de “verdade” estamos mais do que contribuindo para com a cultura do estupro. Estamos fazendo parte dela.

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Minha ex-namorada foi levada a pensar assim. Todos a culparam. E de tanto a culparem ela por muito tempo julgou que os outros estivessem certos. Ela deveria ter feito algo que provocou o seu agressor. De alguma maneira ela deve ter pedido pra ter sido estuprada. Sou só eu ou tem algo muito errado com esses pensamentos? Como uma garota de 15 anos que tem sua casa invadida e roubada por criminosos, aterrorizada por ficar na mira de armas por horas, pode ser culpada por ter sido estuprada por um deles? Parece incoerente pra você também? Pois fique sabendo que não pareceu para o delegado que cuidou do caso.

Infelizmente esse não foi um caso isolado. Todos os dias mulheres são estupradas e a culpa recai sobre elas unicamente. E somos nós quem as culpamos! Em alguns casos, nem nos damos conta disso. Assim como muitos eu também reproduzia várias dessas “verdades”. Eu também reproduzia o discurso da cultura do estupro. Foi preciso que alguém que eu amava sofresse essa terrível experiência para que eu passasse a encarar os fatos sobre um ângulo totalmente diferente. Passasse a notar que, independente da roupa, do lugar, da situação a culpa de um estupro é sempre do estuprador.

Apesar do asco que senti ao encarar toda essa situação, decidi que não tentaria tapar o sol com a peneira e, cinicamente afirmar que nada daquilo me afetava. Procurei informações sobre toda essa cultura terrível, na esperança de poder tentar ajudar minha ex. Com tato, carinho e cuidado ajudei a externalizar parte de sua dor. E, fazendo isso, era obrigado a ver como a mulher calma, cheia de vida e vibrante que ela se esforçava em ser se esvaía em lágrimas revelando a menina fragilizada e impotente, aterrorizada ante a violação de seu corpo. Vi uma ferida enorme em sua alma. O horror de uma inocência arrancada brutalmente!ensine a respeitar

Infelizmente não consegui ajudar muito. O trauma que ela sofreu foi severo demais, intenso demais. Apesar dos meus esforços, sentia que ficava mais difícil. Fui paciente! Tinha de ser! Que outra alternativa eu tinha? Agir como um tolo ignorante e mandar que ela parasse de sentir pena de si mesma? Insensivelmente ordenar que parasse de se lamentar e tocasse a vida, afinal todos temos problemas? Ridículo! Seria apenas legitimar os crimes que ela sofrera. Seria novamente fazer parte da cultura do estupro. Acusa-la de ser a causadora, a culpada!

Tempos depois ela rompeu nosso relacionamento. Fiquei arrasado. Eu, de fato, a amava muito, queria muito ser feliz ao lado dela, mas não foi possível. No entanto, o que me deixou mais arrasado foi não ter conseguido ajuda-la mais.

Ainda sofro por não ter conseguido ajuda-la. Hoje sou casado com uma mulher maravilhosa, uma companheira incrível a qual amo muito e que felizmente nunca sofreu nada parecido! Mas mesmo assim tenho medo, muito, muito medo que algo assim possa ainda acontecer. A realidade, infelizmente, corrobora meu medo.

Procuro fazer minha parte. Quando ensinava (sou Professor de Geografia, embora afastado da licenciatura)* procurava conscientizar meus alunos sobre a questão, mostrava que essa realidade precisava mudar. Minha página pessoal no Facebook vota e meia estampa, como foto de capa, um cartaz alertando sobre a pedofilia. Mudar minha visão das coisas não foi o suficiente para mim. Decidi que ficar parado não ajudaria em nada pra resolver essa situação. É um trabalho complicado e admiro muito quem decidiu que esse é um trabalho que vale a pena ser feito. Pessoas como Aline Valek, Lady Sybylla, Samantha Martins, Gizelli Souza, as meninas do Blogueiras Negras, mulheres formidáveis com quem aprendi muito, mas muito mesmo. A elas peço que continuem com o excelente trabalho e, apesar de todas as dificuldades, persistam! É preciso dar um basta nessa cultura vil, torpe e degradante em que uma mulher é tratada de maneira tão humilhante!respect1

Existe muito a se falar ainda sobre essa questão, mas o espaço aqui é pouco. Por isso procurei espalhar links pelo texto e nas imagens que levam a sites com mais informações sobre. Vai lá, dá uma olhada! A informação é uma arma poderosa contra a cultura do estupro.

Deixe sua opinião também.

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Atualização de fevereiro de 2019: As duas charges usadas no texto são de autoria do chargista e ativista político Carlos Lattuf, feitas especialmente para uma das várias edições da Marcha das Vadias. Você pode ver mais sobre o trabalho do Latuff em sua página do Instagram.

*Retornei a lecionar no ano de 2019 e continuo o trabalho de formiguinha alertando sobre a cultura do estupro e a violência contra a mulher.

4 comentários em “SABIA QUE VOCÊ FAZ PARTE DA CULTURA DO ESTUPRO?

  1. Texto muito bom, eu sempre me deparo com esses tipos de argumentos: ela usou roupa curta e tudo mais! Por isso faço parte das manifestações da Marcha das Vadias e tento influenciar pessoas a mudarem o pensamento. Eu argumento também: e os bebês também provocam?

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